O Ano Novo de Ingrid Maria

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Uma caixa de som bluetooth arranhava uma canção qualquer de O Lendário Chucrobillyman. O cenário não podia ser menos ou mais apropriado, era uma mansão gigante, à beira do lago, com vigia 24 horas, empregados, domésticas, uma gama de mão de obra de quem pretende ostentar uma sofisticação aristocrática.

Edivan, investigador de polícia, de plantão naquela noite, examinava a garota de perto. Olhos petrificados, secos, um resquício branco no canto do nariz, espuma saindo pelos lábios.

“Cocaína, overdose, certeza”, concluiu ele, analisando e recolhendo alguns objetos sobre uma escrivaninha no quarto da adolescente. Era véspera de ano novo.

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A mãe, em desespero e angústia, soltou o grito de lamentação, preso à garganta até aquele momento.

O pai não sabia o que pensar. Mega empresário, dono de construtora, fazendeiro, aquela qualidade de homem pragmático que achava que tinha “dado tudo” à filha, educação, boa condição, viagens, bens caríssimos. Só não tinha dado tempo, seu tempo, à menina. O que ela compensou tomando algo dele.

Ingrid Maria tinha treze anos no dia de sua morte. O investigador apenas balançava a cabeça, resignado com o quanto já vira daquilo. Em bairro rico ou bairro pobre, com plebeus ou reis, nada mudava, sempre o mesmo cenário, quase como uma novela de Rubem Fonseca. “Que tipo de ser humano é canalha a ponto de vender cocaína a uma criança?”, pensava, enquanto executava movimentos automáticos. O pai desligou o som, que já o incomodava há algum tempo. Fez sinal para uma das empregadas acompanhar sua esposa e confortá-la.

“Como será que ela conseguiu isso?”, murmurou o pai para o investigador. 

“É difícil saber, pois, agora que ela está morta, o fornecedor não aparecerá de novo”, comentou Edivan. Pareceu notar um arremedo de alívio no olhar do pai, mas ignorou o instinto por hora. Saiu do quarto e deixou que os agentes do IML recolhessem o corpo da jovem. Na saída da mansão, conversou com um dos motoristas sobre a rotina da criança.

Edivan pensava naquilo a cada instante. “Tinha sempre alguém de olho nela” foi a frase do motorista que pairou na cabeça do investigador, até chegar à delegacia e comentar o caso com os colegas.

“O que você acha, Edivan?”, perguntou um outro policial. 

“O pai usa cocaína, certeza. Tinha aquele olhar de quem não usava há algum tempo. Só que provar isso não vai ser fácil”, concluiu. “Ele é um homem rico, bastante prático, duvido que assumiria que a filha pegou algo escondido de seu estoque pessoal de drogas. A menina está morta e essa gente não valoriza uma vida que não seja a própria. Tenho pena da mãe, ela sim parecia bastante abalada”.

“Mulher sempre fica, Edivan. O pai também deve estar”.

“Não, nesse caso é exatamente como eu disse. O pai está longe de assumir qualquer coisa e nenhum juiz do mundo vai autorizar que o investiguemos. Essa é a vantagem dos muito ricos, velho: eles são intocáveis”.

“Uma história triste, penso eu”.

“Sim, uma história triste”, concordou Edivan. “Se ao menos ela fosse encontrada a tempo de ser socorrida, certeza que nos diria de quem é a cocaína. Mas já era”.

“O mundo é cão, Edivan”. 

“O mundo é cão”, concordou. “Daqui a pouco é ano novo”.

***

O legista estava iniciando os procedimentos de autópsia, começando pelo básico: analisar o cadáver externamente. Depois da meia-noite, voltaria e abriria a garota.

Com uma lupa conferiu os olhos de Ingrid Maria, demorou no resquício de pó em torno do nariz, coletando amostras, e desceu para a espuma da boca, quando notou se formar um leve esgar do lado esquerdo e saltou para trás. Já tinha visto movimentos involuntários em cadáveres antes, mas aquilo pareceu estranho.

Colocou a mão no pescoço da menina e notou um quase fantasmagórico batimento cardíaco.

“Jesus, Maria, José!”, gritou,

e começou uma respiração boca a boca e uma massagem cardíaca frenética, gritando mais alto ainda por ajuda a qualquer um que estivesse no prédio e fosse capaz de ouvir.

Não precisou muito, segundos depois, Ingrid Maria saltava na mesa de aço, tossindo e vomitando espuma branca. O legista correu para o telefone celular sobre sua mesa e chamou a emergência.

Lá fora, fogos e mais fogos estouravam.

Era ano novo.

Ingrid Maria, 13 anos, nascia outra vez.

(Um conto de l. r. silva)